População:
Detalhes: O “algodão bravo”, como é conhecido Gossypium mustelinum, é um arbusto perene que pode atingir 6 m de altura (Barroso et al., 2010; Pickersgill et al., 1975). Historicamente, a primeira população conhecida dessa espécie foi descoberta por Gardner em 1838 no, então, município de Crato no estado do Ceará (Barroso et al., 2010). Após este registro, apenas em 1965 a espécie foi novamente encontrada em um sítio chamado Salgadinho (Serra da Formiga), município de Caicó no estado do Rio Grande do Norte, cujas plantas formavam uma colônia com menos de 20 indivíduos, dos quais alguns eram jovens (Neves et al., 1965). Até 2005, apenas seis pequenas populações haviam sido descritas, sendo a população presente no sítio Salgadinho formada por apenas 11 indivíduos adultos (Barroso et al., 2010). Dentre as causas da redução dessa população, Barroso et al. (2010) citam os danos provocados pelo pastejo de bovinos e a secagem da única fonte permanente de abastecimento hídrico (Olho D’água dos Algodões), cujo seu desaparecimento causou a morte de ao menos quatro indivíduos adultos. Ainda, segundo os autores, duas outras pequenas populações descritas para a Serra da Formiga (Freire et al., 1990; Wendel et al., 1994) não foram localizadas e a sua extinção poderia ter sido causada pelo pastejo de bovinos e desmatamento (Barroso et al., 2010).
No estado da Bahia, no município de Cabeceiras do Paraguaçu, a população de Gossypium mustelinum encontrada na década de 1970 às margens do rio Paraguaçu, na fazenda Belo Vale, não foi reencontrada na expedição realizada em 2005 e seu desaparecimento foi atribuído a destruição da vegetação às margens do rio, após a construção da barragem no ano de 1985 (Barroso et al., 2010). Já a população do município de Jaguarari, conhecida desde 1982 (Freire, 2000) nas margens do Riacho da Barrinha na localidade de Pilar, teve redução gradual do número de indivíduos verificada em expedições anteriores, até no ano de 2004 nenhum indivíduo ser encontrado (Barroso et al., 2010). Este declínio poderia ser atribuído ao elevado número de caprinos que, durante a estação seca, alimentam-se não apenas das sementes, folhas e ramos de Gossypium mustelinum, mas também de sua casca o que induz a morte da planta (Barroso et al., 2010). Nesse município, em 2005, uma nova população foi encontrada dentro da área de resíduos da mina de cobre pertencente à Mineradora Caraíba, com cerca de 500 indivíduos adultos e um grande número de jovens (Barroso et al., 2010). Tal população apresenta franco crescimento e regeneração, uma consequência das medidas de proteção contra a ação predatória de herbívoros (caprinos) e do homem adotada pela Mineradora (Barroso et al., 2010).
As duas últimas populações, ambas no município baiano de Macururé, apresentam situações muito distintas. A primeira delas situada na Fazenda Barbosa, localidade de Salgado do Melão, foi descoberta em 1972 crescendo às margens de três pequenos e intermitentes poços de água (Pickersgill et al., 1975). Naquela ocasião, Pickersgill et al. (1975) descrevem que a colônia no entorno da Lagoa Patori era formada por ao menos 18 indivíduos adultos e alguns jovens, a qual encontrava-se de certo modo protegida do pastejo de bovinos por uma espécie de bromélia espinescente (Bromelia laciniosa Mart. ex Schult. & Schult.f.); na Lagoa dos Algodões foram encontrados apenas três indivíduos pequenos, pois a colônia havia diminuído muito após a queimada efetuada para erradicar tal bromélia para facilitar e aumentar a área de pastejo dos bovinos; e a última lagoa apresentava um único indivíduo. A segunda população situada na Fazenda São Francisco, na localidade de São Francisco, crescia em condições ecológicas muito distinta da anterior (distante de qualquer fonte de água e em ambiente extremamente seco e aberto) e mais associada à bromélia, contudo, esta pequena colônia era formada por cerca de 10 indivíduos depauperados (Pickersgill et al., 1975). Segundo Borém et al. (2003) este pequeno número de indivíduos encontrados pode ser uma indicação de que a espécie está em risco eminente de extinção. Em 2005, Barroso et al. (2010) visitaram as duas populações de Macururé e encontraram na Fazenda Barbosa cinco colônias nas margens dos poços de águas chamados de Lagoas de Paturis, das Mulheres, dos Cavalos, dos Algodões e a planície de inundação chamada Varjão. Os autores relatam que as condições da vegetação eram similares ao descrito por Pickersgill et al. (1975), porém o fato do proprietário da fazenda cercar a área para proteger a população do pastejo efetuado por caprinos resultou no aumento do número de indivíduos de Gossypium mustelinum, sendo encontrados 43 adultos também associados à espécie de bromélia (Barroso et al., 2010). Ao contrário, a população de São Francisco foi encontrada em situação ainda pior que aquela de seu descobrimento, com apenas dois indivíduos adultos e alguns poucos jovens danificados pela pastagem de animais (Barroso et al., 2010).
Desde então, outras expedições têm sido realizadas para monitorar as populações de Gossypium mustelinum e novas áreas de ocorrência foram encontradas, no ano de 2006, nas margens dos rios Capivara e Tocó (Alves et al., 2013) e, de 2009, na bacia do rio de Contas, Bahia (Menezes et al., 2014a). Ao longo do rio Capivara, nos seis locais amostrados no município de Itaberaba, Alves et al. (2013) encontraram cerca de 1.200 indivíduos da espécie e atribuíram isso ao melhor estado de conservação da vegetação nativa devido a menor interferência humana. Por outro lado, ao longo do rio Tocó (seis locais distribuídos nos municípios de Riachão do Jacuípe, Ichu e Conceição do Coité) foram encontrados mais de 350 indivíduos do algodão bravo, cujas plantas estavam bastante afetadas principalmente pela atividade pecuária extensiva e de desmatamento da floresta ripária (Alves et al., 2013). Ainda, segundo Alves et al. (2013), estes locais quando protegidos por cercas ou por espécies espinescentes (como já descrito em outras populações, Barroso et al., 2010; Pickersgill et al., 1975) apresentavam maior número de indivíduos (Alves et al., 2013). Na bacia do rio de Contas, Menezes et al. (2014a) encontraram 10 subpopulações distribuídas em quatro populações nos municípios de Iramaia, Jequié, Boa Nova e Manoel Vitorino. Com exceção da subpopulação da fazenda Graciosa, em Manoel Vitorino, onde um grande número (1000 indivíduos) de plantas jovens foi observado, nas demais subpopulações o número de Gossypium mustelinum foi geralmente pequeno (Menezes et al., 2014a). Na subpopulação Jacaré, em Iramaia, foram observados 50 indivíduos de algodão bravo, 30 em Quixaba, 150 em Serra Azul e 30 indivíduos no Riacho Riachão em Jequié, e outros 81 indivíduos no Riacho Riachão já no município de Boa Nova (Menezes et al., 2014a).
Além disso, a Embrapa Algodão mantém um banco de dados com 95 ocorrências de acessos registrados no estado da Bahia (Albrana, 2018). Essas ocorrências foram registradas em distintas localidades, sendo que em Bandiaçu há um total de 20 indivíduos adultos de algodão bravo, em Boa Nova (3/0 adultos e jovens, respectivamente), em Candeal (6/0), em Euclides da Cunha (1/0), em Iaçu (12/0), em Ichu (40/0), em Iramaia (50/0), em Itaberaba (1172/0), em Jaguarari (13/0), em Jequié (476/216), em Macururé (904/564), em Manoel Vitorino (20/10), em Milagres (107/52), em Monte Santo (16/0), em Riachão do Jacuípe (419/0), em Rui Barbosa (15/7) e dois indivíduos adultos em São Domingos (Albrana, 2018). Recentemente, três novas populações de Gossypium mustelinum foram descritas na planície costeira do estado do Pernambuco, sendo os locais conhecidos como Ponta de Pedras e Barra de Catuama, no município de Goiana, e Praia do Sossego em Itamaracá (da Silva et al., 2018). Tais populações, entretanto, estão sob sério risco de extinção a curto prazo, devido às frequentes queimadas realizadas para limpar os lotes onde as plantas ocorrem, além da acelerada expansão imobiliária (da Silva et al., 2018). Ainda, em 2018, os pesquisadores da Embrapa registraram 107 indivíduos de algodão bravo nos municípios de Pitimbu e João Pessoa, na Paraíba. Contudo, não há ainda estudos populacionais que descrevam a estrutura demográfica de Gossypium mustelinum em qualquer das suas populações conhecidas. Consequentemente, a dinâmica populacional da espécie ante os processos envolvidos no seu estabelecimento e em resposta às perturbações naturais e antrópicas não é conhecida. Até o momento, apenas foi verificado que a ausência de perturbações provocadas pela ação de herbívoros ou humana favorece (regeneração) a ocorrência de indivíduos jovens do algodão bravo (Alves et al., 2013; Barroso et al., 2010; Menezes et al., 2014a).
No que se refere à biologia reprodutiva, Gossypium mustelinum é uma espécie com flores hermafroditas, cuja reprodução sexual pode se dar por autofecundação (autogamia ou geitogamia) ou fecundação cruzada na presença de polinizadores (Alves et al., 2013; Borém et al., 2003; Menezes et al., 2014a; Wendel et al., 1994). Os principais polinizadores responsáveis por realizar a polinização cruzada das espécies de algodão são abelhas, especialmente Bombus spp. e Apis spp. (Borém et al., 2003). Além disso, a espécie também reproduz assexuadamente com a formação de clones a partir de partes do caule (estacas), inclusive algumas são mantidas in vivo no banco de germoplasma da Embrapa ou na Universidade Rural Federal de Pernambuco (Barroso et al., 2010; da Silva et al., 2018; Menezes et al., 2014a). Ainda em relação a reprodução sexuada, Gossypium mustelinum e todas as espécies de algodão que ocorrem no Brasil são alotetraplóide e sexualmente compatíveis (Alves et al., 2013; da Silva et al., 2018; Menezes et al., 2014a, 2014b, 2015). Assim, a possibilidade de ocorrer fluxo gênico via pólen (além da dispersão de sementes ou caroços) entre o algodão bravo e as outras espécies (incluindo os cultivares) com ocorrência simpátrica é uma preocupação (Menezes et al., 2015; Pereira et al., 2012; Sousa, 2010), mesmo que a competição de pólen seja parcialmente uma barreira reprodutiva (Pereira et al., 2012; Sousa, 2010). Se por um lado, a maioria das populações de Gossypium mustelinum ocorrem isoladas dos campos de cultivo de algodão, por outro, algumas plantas derivadas de grãos usados para alimentar o gado ou dispersas durante o transporte podem ser encontradas próximas dessas populações silvestres (Pereira et al., 2012). Menezes et al. (2014a) ressaltam que a simpatria entre o algodão bravo e outras espécies alotetraplóide de Gossypium devem ser evitadas caso a conservação in situ seja desejada.
Além desses processos ligados ao sistema de reprodução de Gossypium mustelinum, os estudos genéticos têm mostrado que suas populações apresentam altos níveis de endogamia (Alves et al., 2013; Barroso et al., 2010; Menezes et al., 2014a; Wendel et al., 1994), baixa diversidade genética (Barroso et al., 2010; Wendel et al., 1994), alta quantidade de alelos exclusivos (Alves et al., 2013; Barroso et al., 2010), efeito de gargalo (Alves et al., 2013; Barroso et al., 2010; Menezes et al., 2014a) e baixo ou inexistente fluxo gênico (Alves et al., 2013; Menezes et al., 2014a) devido isolamento geográfico e o baixo número de indivíduos (Alves et al., 2013; Barroso et al., 2010; Menezes et al., 2014a; Wendel et al., 1994). Ainda, um fator reprodutivo e genético importante a ser considerado é a hibridização interespecífica, cuja introgressão havia sido inicialmente tratada como um evento raro e que teria ocorrido de forma unidirecional, de Gossypium mustelinum para um algodão cultivado (Freire et al., 1990; Wendel et al., 1994). Posteriormente, a ausência ou baixa ocorrência de cruzamento interespecíficos também foi reportada (Alves et al., 2013; Barroso et al., 2010). Segundo Pereira et al. (2012), embora o fluxo gênico possa ser um problema nos locais com ocorrência simpátrica das espécies, híbridos naturais não ocorrem ou sua frequência é muito baixa na natureza. Já Menezes et al. (2014a) encontraram evidências fenotípicas de introgressão a partir de Gossypium barbadense L. nas plantas de algodão bravo coletadas no rio Jacaré. Contudo, os resultados do estudo de Menezes et al. (2015) mostraram que há introgressão nas populações de Gossypium mustelinum em condições naturais a partir de espécie exótica cultivada. O estabelecimento e expansão do algodão exótico pode levar a um aumento na taxa de hibridização (Pereira et al., 2012) porque a taxa de cruzamento interespecífico, possivelmente, é correlacionada com a frequência da espécie exótica e, portanto, a coexistência entre eles deve ser evitada (Menezes et al., 2015). Além da fragilidade genética, há um risco fitossanitário decorrente da introdução de espécies cultivadas próxima das populações de algodão bravo, uma vez que elas foram susceptíveis a todas as doenças estudadas (Menezes et al., 2014b).
Neste contexto, foram estabelecidas as zonas de exclusão para evitar o cruzamento interespecífico entre os algodões exóticos ou aqueles cultivares transgênicos com as espécies nativas (Barroso et al., 2005; Borém et al., 2003). O estabelecimento dessas zonas de exclusão (isolamento geográfico) figura como a medida mais eficaz para evitar que a estrutura genética das populações nativas seja afetada e para reduzir a probabilidade de introgressões, uma vez que as espécies são sexualmente compatíveis e não há barreiras sexuais completas (Barroso et al., 2005). Entretanto, as zonas de exclusão de algodoeiros transgênicos que visam proteger as populações de Gossypium mustelinum abrangem apenas municípios dos estados do Rio Grande do Norte e Bahia (Barroso et al., 2005; Borém et al., 2003). Considerando as informações recentes sobre a distribuição de Gossypium mustelinum faz-se necessário a ampliação das zonas de exclusão de cultivares transgênicos, a fim de abranger também as novas populações da espécie (da Silva et al., 2018).
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